Não basta abrir a janela
Para ver os campos e o rio.
Não é bastante não ser cego
Para ver as árvores e as flores.
É preciso também não ter filosofia nenhuma.

Fernando Pessoa

Poema misterioso, este pequeno texto do poeta português. Será suficiente abrirmos os olhos, afinal, para assimilar o ambiente que se estende à nossa volta? É possível crermos nessa ideia, embora olhando para obras de arte do passado, nos surpreendamos por ver que a paisagem é algo que surge apenas tardiamente na história da arte. Se certamente se veem nela, há muito tempo, flores, folhas, ou mesmo árvores, é como se tivessem sido necessários vários séculos de desenhos, gravuras e pinturas para que os artistas verdadeiramente vissem aquilo que havia à frente dos seus olhos: uma paisagem urbana ou rural, uma natureza virgem, o mundo que efetivamente nos rodeia, seja qual for a sua natureza.

Paisagem com Orfeu e Eurídice – Nicolas Poussin (1650)

Na Europa, a arte viveu profundamente ligada, durante muito tempo, à religião. As suas obras existiam para celebrar Deus e um mundo transcendente. Foi apenas a partir do séc. XIV, e com a generalização do recurso à perspetiva, que as obras se viraram para aquilo que era terreno, de maneira a acolher, aos poucos, o mundo e as suas paisagens. Primeiro idealizadas e concebidas para servirem de decoração a cenas religiosas ou mitológicas, as paisagens foram, pouco a pouco, ganhando autonomia, até se tornarem num tema em si.

Até ao séc. XIX, as paisagens eram pintadas no resguardo dos ateliers e baseando-se em esboços ou na memória dos artistas. Com a invenção do comboio e dos tubos de pintura, os artistas puderam finalmente pintar no meio da natureza e nas paisagens que queriam reproduzir. É o surgimento da revolução impressionista.

Caminhada na Falésia em Pourville – Claude Monet (1882)

Contudo, não será pelos pintores se verem perante estas paisagens que as vão pintar tal como elas são. Todo o olhar traz um ponto de vista, uma disposição, uma emoção, uma intenção. Neste sentido, todo o olhar é uma construção. Perante a mesma paisagem, dez pintores pintariam dez quadros diferentes. Se o mundo é algo que todos partilhamos, o mesmo não podemos dizer, no entanto, quanto ao olhar que cada um lhe oferece, algo que nos é absolutamente pessoal e, por isso, singular. Olhar para uma obra nunca é ver aquilo que se representa nela — o seu objeto — mas antes descobrir o olhar do artista.

Caminhante sobre o Mar de Névoa – Caspar David Friedrich (1818)

Talvez fosse isso aquilo que Fernando Pessoa procurasse exprimir. Para vermos verdadeiramente a essência daquilo que existe à nossa frente, a essência de um rio, de uma árvore, ou mesmo da relva, será necessário esquecermos as nossas disposições, os nossos sentimentos, as nossas ideias, e apenas acolhermos aquilo que vemos. Será isso possível?

Julgámos poder fazê-lo com o nascimento da fotografia e do cinema, desta vez com o olhar de máquinas que reproduziam mecanicamente aquilo que lhes era oferecido. E, no entanto, tanto na fotografia, no cinema, como na pintura, a pessoa atrás da máquina traz um olhar, ideias e pontos de vista. Essa pessoa contamina as imagens do mundo com a sua singularidade. O cinema documental, que cremos ser uma gravação da realidade, a verdade de um tema específico, traz consigo tanta ficção quanto aquela que existe num western. Observar o mundo é transformá-lo.

Cidade Ideal – Atribuído a Fra Carnevale (1480 – 1484)

Em função das épocas, dos países, e das técnicas usadas, os artistas trabalharam o tema da paisagem a partir de perspetivas diferentes: uma paisagem-espelho da alma, para os românticos; uma paisagem selvagem para conquistar e civilizar, como nos westerns; um paisagem mítica como reflexo de um paraíso perdido; uma paisagem urbana para entender as nossas maneiras de habitarmos as cidades; uma paisagem pós-apocalíptica para a ficção científica; uma paisagem em perigo, a ser respeitada e protegida nas obras que se debruçam sobre a presente crise ecológica… A representação da paisagem levanta inúmeras questões. Contudo, todas nos levam a uma questão fundamental: a ligação ao nosso meio e à maneira de habitarmos o mundo.